Category: urucum

  • escolas tomadas

    Alunas ocupam universidades no Chile para denunciar violência de gênero

    traduzido por: Bárbara Lopes

    Com ocupações e greves, estudantes universitárias chilenas estão em uma grande onda de manifestações contra a violência machista e por protocolos contra casos de assédio sexual que, segundo as jovens, são acobertados pelas instituições. No momento, são 15 universidades ocupadas e outras tantas em greve. O estopim foi na Faculdade de Direito da Universidade do Chile, ocupada por alunas no dia 27 de abril para protestar contra a demora de uma resposta a uma denúncia de assédio sexual e trabalhista feita há oito meses contra um professor. Em apoio à mobilização, professoras, intelectuais e ativistas políticas fizeram um manifesto que traduzimos abaixo:

     

    Estamos diante de um movimento de transcendência histórica. Estão se levantando, em nosso país, em diversas universidades, assembleias, greves e ocupações feministas, configurando formas de ação coletiva que há poucos anos não eram sequer imagináveis e que hoje estouram no cenário público para desafiar as fundações patriarcais e androcêntricas das instituições universitárias.

    Este novo ciclo de mobilizações, que se inicia por denúncias de assédio sexual e pela insuficiência dos protocolos e normativas existentes, abre uma possibilidade inédita de colocar em questão o sistema de educação superior em seu conjunto, pois tanto a violência machista quanto a reprodução das desigualdades de gênero denunciadas estão estreitamente imbricadas com o caráter antidemocrático e mercantil das instituições educativas.

    Sabemos que a violência de gênero é grande e complexa e que atravessa todas as esferas de nossa vida. Por isso, transformar esta dimensão nas universidades implica transformar estruturalmente a educação, minando as bases do sexismo que reproduz, nas instituições educativas, a divisão sexual do trabalho, reforçando a associação de razão, poder e sucesso no mercado com o masculino e de emotividade, subordinação natural e precarização com o feminino. Neste sentido, não é nada casual que usemos a expressão “casa de estudos” para nomear as universidades, se vemos como estas replica, os papéis de gênero, constituindo assim uma extensão da casa heteropatriarcal na esfera da educação formal.

    A luta contra o patriarcado e contra a reprodução dos papéis de gênero é também uma luta contra a educação de mercado, pois as carreiras feminizadas, associadas aos trabalhos de cuidado, crianças e empatia, são precisamente as mais precarizadas, enquanto que as carreiras tipicamente masculinas são as mais valorizadas socialmente, as mais exitosas no mercado e as que contam com maiores recursos. Isso segue reforçando a reprodução dos papéis de gênero e perpetua a violência contra os corpos feminizados. O feminismo, justamente, convida a desafiar essa reprodução e entender que não podemos lutar contra o patriarcado na educação sem lutar contra o mercado que reforça as assimetrias de gênero e que orienta as instituições educativas.

    Pensar a educação feminista significa pensar a democracia, a liberdade e a igualdade. Ideais que não são sinônimo de empoderamento individual e meritocracia sustentada em privilégios socioculturais e que tampouco podem ser tratados mediante a incorporação cosmética da “perspectiva de gênero” em cursos, programas de aperfeiçoamento ou formação continuada, capacitações ou outros mecanismos característicos da administração universitária neoliberal. Una educação feminista significa transformação desde a raiz, abarcando a ordem jurídica (mudança de estatutos a partir de uma ordenação feminista), igualdade substantiva (procedimentos de paridade, igualdade de salários, etc.), perspectiva teórica feminista para o questionamento geral do conceito de educação e de universidade, das disciplinas até as hierarquias. A educação feminista significa também retomar as bandeiras históricas da luta pela educação pública e insistir na educação como um direito social e na necessidade de financiamento direto às universidades públicas, para poder materializar um projeto educativo transformador e garantir condições de dignidade e igualdade trabalhista para acadêmicas/os e funcionárias/os, porque o feminismo contesta também a precarização do trabalho.

    O feminismo coloca em questão as hierarquias, os privilégios e as desigualdades, já que as assimetrias de poder e o caráter estratificado nos espaços sociais geram condições propícias para o abuso e para sua naturalização. Nesse sentido, a democratização das instituições educativas e o trabalho coletivo são condições de possibilidade para levar adiante a transformação de nossas universidades a partir de uma perspectiva feminista.

    As mobilizações estudantis que explodiram são uma rebelião contra a injustiça que os mandatos do gênero impõem no neoliberalismo. Portanto, o resgate da educação pública da captura do mercado sexista não passa por ter uma universidade mais neoliberal com “perspectiva de gênero”, e sim por derrubar as bases da educação mercantil-sexista para construir a partir do feminismo uma nova educação pública.

    Saudamos e apoiamos com entusiasmo as estudantes que levantaram este movimento e como deputada feminista, professoras universitárias, escritoras e intelectuais fazemos um chamado a assumir um papel ativo nesta mobilização, organizando-nos, criando espaços de discussão e nos articulando em uma aliança feminista ampla, que crie as bases de um novo pacto social por uma nova educação pública, democrática e feminista.

    Assinam:

    • Camila Rojas Valderrama. Diputada Izquierda Autónoma. Frente Amplio.
    • Beatriz Sánchez. Instituto de Comunicaciones e Imagen. Universidad de Chile.
    • Faride Zerán Chelech. Universidad de Chile.
    • Diamela Eltit. Escritora.
    • Nelly Richard. Crítica Cultural y Ensayista.
    • Alejandra Castillo. Filósofa feminista. Departamento de Filosofía. Universidad Metropolitana de Ciencias de la Educación.
    • Daniela López Leiva. Encargada Feminista Diputación Camila Rojas Valderrama.
    • Pierina Ferretti. Socióloga. Centro de Estudios Culturales Latinoamericanos Universidad de Chile – Fundación Nodo XXI.
    • Camila Miranda. Directora Fundación Nodo XXI.
    • Carolina Olmedo Carrasco. Universidad Alberto Hurtado. Directora Fundación Nodo XXI.
    • Yesenia Alegre Valencia. Socióloga. Universidad Viña del Mar. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Leticia Arancibia Martinez. Pontificia Universidad Católica de Valparaíso. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Gloria Caceres Julio. Pontificia Universidad Católica de Valparaíso. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • María Angélica Cruz. Universidad de Valparaíso. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Mónica Iglesias. Instituto de Sociología. Universidad de Valparaíso. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Patricia González San Martín. Facultad de Humanidades. Universidad de Playa Ancha. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Tania de Armas Pedraza. Directora Departamento de Sociología Universidad Playa Ancha. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Sonia Reyes Herrera. Instituto de Sociología Universidad de Valparaíso. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Lorena Zuchel Lovera. Departamento de Estudios Humanísticos UTFSM. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Jeanne Hersant. Departamento de Sociología Universidad de Playa Ancha. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Alejandra Ramm Santelices. Universidad de Valparaíso. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Claudia Montero. Instituto de Historia y Ciencias Sociales Universidad de Valparaíso. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Maribel Ramos Hernández. Departamento de Sociología Universidad de Playa Ancha. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Marjorie Mardones Leiva. Facultad de Ciencias Sociales. Universidad de Playa Ancha. Red de Académicas Feministas de Valparaíso.
    • Pamela Soto Vergara. Psicóloga. Universidad Andrés Bello.
    • Luna Follegati Montenegro. Historiadora. Universidad Metropolitana de Ciencias de la Educación.
    • Rosario Olivares. Departamento de Filosofía. Universidad Alberto Hurtado.
    • Carolina Avalos. Facultad de Filosofía y Humanidades. Universidad Austral de Chile.
    • Lelya Troncoso. Trabajo Social. Universidad de Chile.
    • Mia Dragnic. Socióloga. Maestra en Estudios de Género. Universidad de Chile.
    • Caterine Galaz. Trabajo Social. Universidad de Chile.
    • Hillary Hiner. Escuela de Historia. Universidad Diego Portales.
    • Laura Albornoz Pollmann. Departamento de Derecho Privado. Universidad de Chile.
    • Daniela Marzi. Universidad de Valparaíso.
    • Javiera Arce. Universidad de Valparaíso.
    • Isabel Piper. Psicología. Universidad de Chile.
    • Paula Quintana. Instituto de Sociología. Universidad de Valparaíso.
    • Antonella Marín. Instituto Arcos Viña del Mar.
    • Paula López. Instituto Arcos Viña del Mar.
    • Eloid Chabaud. Instituto Arcos Viña del Mar.
    • Ana Luisa Muñoz. Profesora de Historia e Investigadora.
    • Claudia Rojas Necuhual. Facultad de Economía y Negocios. Universidad de Chile.
    • Ana Traverso. Facultad de Filosofía y Humanidades. Universidad Austral de Chile.
    • Karen Alfaro. Facultad de Filosofía y Humanidades. Universidad Austral de Chile.
    • Mónica Peña. Facultad de Psicología. Universidad Diego Portales.
    • Ariadna Biotti Silva. Archivo Central Andrés Bello. Universidad de Chile.
    • Javiera Carmona Jiménez. Universidad de Playa Ancha.
    • María José Yaksic. Magíster en Estudios Latinoamericanos. Universidad de Chile.
    • Ximena Azúa. Facultad de Ciencias Sociales. Universidad de Chile.
    • Daniela Jara. Instituto de Sociología. Universidad de Valparaíso.
    • Carolina Benavente Morales. Centro de Investigaciones Artísticas. Universidad de Valparaíso.
    • Javiera Robles Recaberren. Doctoranda en Historia. UNLP/IIGG-CONICET
    • Karin Berlien Araos. Departamento de Ingeniería Comercial. Universidad de Valparaíso.
    • Pamela Jaime Elías. Profesora de Historia.
    • María Isabel Puerto Perez. Abogada. Docente Universidad de Valparaíso.
    • Verónica Francés. Arquitecta. Centro de Investigaciones artísticas. Universidad de Valparaíso.
    • Carolina Andrade Amaral. Encargada Oficina Comunal Diversidades Sexuales y Docente en Violencia de Género. Universidad Andrés Bello.
    • Sara Avalos Urtubia. Profesora de Historia y Geografía. ONG Contra de Reñaca Alto.
    • Sandra Rojas Cáceres. Trabajadora Social. Universidad de Viña del Mar y Universidad de las Américas.
    • Ana Gálvez Comandini. Historiadora. Universidad Metropolitana de Ciencias de la Educación.
    • Alejandra Zuñiga Fajuri. Escuela de Derecho. Universidad de Valparaíso.
    • Marcela Díaz Rebolledo. Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales FLACSO Chile.
    • Sofía San Martín Moreno. Socióloga. Universidad de Playa Ancha.
    • María Soledad Vargas Carrillo. Pontificia Universidad Católica de Valparaíso. Directora Magister en Comunicaciones.
    • Lina Marín Moreno. Universidad de Valparaíso.
    • Nico Mazzucchelli. Trabajadora Social. Académica Universidad de Viña del Mar y Universidad de Valparaíso.
    • Nicole Cisternas Collao. Socióloga.
    • Carolina Pinto. Socióloga. Académica Universidad de Viña del Mar.
    • Claudia Espinoza. Universidad de Valparaíso.
    • Tamara Ortega Uribe. Socióloga. Universidad de Playa Ancha.
    • Camila Arriagada B., Unidad de Control de Proyectos Universidad Técnica Federico Santa María
    • Claudia López, Departamento de Informática y Observatorio de Género en Ciencia e Ingeniería UTFSM.
    • Paulina Santander Astorga, Departamento de Industrias y Observatorio de Género en Ciencia e Ingeniera UTFSM.
    • Marianna Oyanedel, Departamento de Estudios Humanísticos UTFSM.
    • Aldonza Jaques, Departamento de Ingeniería Química y Ambiental UTFSM
    • Marcela Prado Traverso Facultad de Humanidades, Universidad de Playa Ancha
    • Francesca Iunissi, Facultad de Ingeniería, Universidad de Playa Ancha
    • Karen Alfaro, Facultad de Filosofía y Humanides, Universidad Austral de Chile
    • Ana Traverso, Facultad de Filosofía y Humanidades, Universidad Austral de Chile
    • Paola Bolados, Instituto de Historia y Ciencias Sociales, Universidad de Valparaíso.
    • Karina Marambio Guzmán, Escuela de Psicología. Universidad de Valparaíso.
    • Esperanza Díaz Cabrera, Profesora de Historia, Magíster en Historia.
    • Verónica Figueroa Huenchu. Instituto de Asuntos Públicos. Universidad de Chile.
    • Paulina Vergara Saavedra. Instituto de Asuntos Públicos. Universidad de Chile.
  • A destruição da empatia (e as lágrimas felizes)

    por Amador Fernández-Salvater

    Originalmente publicado em espanhol em: https://www.eldiario.es/interferencias/8M-Patricia_Ramirez-Mame_Mbaye_6_753184690.html

    Tradução Tática: Alana Moraes, Anne Clio, Graciela Foglia, Henrique Parra

    É possível ler a conjuntura política não simplesmente como uma disputa entre diferentes grupos pelo poder, mas como um choque entre diferentes percepções da vida social, entre diferentes sensibilidades da vida em comum?

    Vamos experimentar responder a essa pergunta apoiados no sugestivo conceito de \”pedagogia da crueldade\” proposto pela antropóloga Rita Segato. Explico muito brevemente esse conceito abaixo.

    Em nossas sociedades a vida se torna cada vez mais precária: o desamparo e a falta de proteção são tendências gerais e transversais.

    O capitalismo de hoje não procura simplesmente a sua reprodução regulada, mas busca incessantemente a conquista de novos territórios objetivos e subjetivos: novas terras e novas camadas do ser para explorar. É um capitalismo de rapina.

    Essa conquista permanente exige, não apenas a abolição das antigas regulações e proteções (muitas vezes fruto das lutas dos debaixo), mas de uma dessensibilização radical.

    Na guerra de todos contra todos, a competição geral e o salve-se quem puder, o outro deve ser percebido acima de tudo como um obstáculo, uma ameaça: como inimigo.

    O princípio da crueldade se realiza como redução da empatia: o outro é descartável e dispensável, nenhum fio me liga a ele, nossos destinos não têm nada em comum.

    Existe toda uma \”programação neurobélica de baixa empatia\” em nossas sociedades. E a violência aqui é a ferramenta chave: lança a mensagem instrutiva de que o outro (mulher, velho, migrante, pobre, negro, dissidente) é supérfluo, pode ser eliminado.

    O que sustenta as políticas de precarização da vida é uma certa configuração (ou desconfiguração) da percepção e da sensibilidade. Estas são questões políticas de primeira ordem, mas as análises de conjuntura as ignoram, concentrando-se em vez disso nas manobras partidárias, nas intrigas palacianas, nas relações de força entre organizações e facções, nas sondagens e na \”opinião pública \”. É necessário e urgente equipar-se com uma sensibilidade poética sismográfica para entrar e descrever este plano de realidade.

    Direitização afetiva

    Muitas vezes já foi dito. O 15M (movimento dos Indignados) funcionou na Espanha como um \”firewall\” contra a ascensão do populismo de direita que se estende nos níveis micro e macro em toda a Europa: Frente Nacional, Brexit, Alternativa para a Alemanha, Pegida, Liga do Norte, Casa Pound, Amanhecer Dourado.

    Mas que tipo de \”firewall\” foi aquele? De nossa parte, ainda insistimos em pensar e descrever o 15M como um efeito de sensibilidade. Um fenômeno de sensibilização coletiva. A partir de maio de 2011, uma espécie de \”segunda pele\” foi implantada por toda a sociedade, através da qual se sentia como algo próprio e próximo o que acontecia a outros desconhecidos.

    Isso não significa que todos estavam presentes em cada despejo nos bairros, em cada acompanhamento de um migrante sem cartão de saúde, em cada confinamento em uma escola ameaçada de cortes, mas sim que havia um clima social geral que envolvia, conectava e amplificava cada ação, cada iniciativa. O 15M criou um comum sensível no qual era possível sentir os outros e com os outros, como semelhantes.

    Essa pele foi arrancada ou adormeceu, enfraquecida em grande parte por uma \”verticalização\” da atenção e do desejo, depositada e delegada durante o \”ataque institucional\” da promessa eleitoral da nova política (Podemos, confluências, etc). Cativados pelos estímulos que vinham de cima (TV, líderes, partidos), negligenciando o que acontecia ao nosso redor, a pele rachou.

    Na realidade, não saímos de nenhuma crise: simplesmente perdeu-se o contato sensível entre os \”afundados\” e os \”salvos\” (ou aqueles que pensam que estão salvos por enquanto). A retirada do \”firewall\” 15M deixa o caminho livre para as forças que estão sempre aí: o aprofundamento e a consolidação da precariedade existencial geral, a guerra de todos contra todos, o salve-se quem puder.

    O veneno de amargura que reside em cada um por tantas humilhações sofridas no cotidiano, sejam grandes ou pequenas, reais ou imaginárias, torna-se o ferrão de um ressentimento vitimista, circulando hoje com prazer pelas redes sociais.

    A \”direitização\” da qual se fala ultimamente, especialmente como a raíz do que \”despertou\” em toda Espanha no conflito da Catalunha, não é, em primeiro lugar, uma questão ideológica, identitária ou política, mas uma tensão social e afetiva. Um endurecimento da percepção e sensibilidade.

    O fundo do conteúdo das bandeiras espanholas que ainda podem ser vistas em tantas varandas (já valem para a copa do mundo …) é o medo, a amargura, a solidão, o desejo reativo de ordem, consumo e punhos cerrados contra tudo que desestabilize ou desvie a ficção da normalidade, com o anti-catalanismo como o primeiro elemento aglutinante.

    Ciudadanos (com fortes ressonâncias de Macron) é certamente o partido que, de maneira mais desenvolta, agita hoje essa \”paixão obscura\” (Diego Sztulwark) a fim de capturá-la mais tarde eleitoralmente, fazendo dela a base do projeto político de transformar a sociedade em uma empresa total. Onde só há lugar para os vencedores, onde não há espaço para os adversários (destituídos como interlocutores mediante a repressão, a censura e a criminalização), nem tampouco para as \”anomalias\” (como os comuns urbanos, as ocupações, os ambulantes).

    Nesse fundo obscuro e tenso também aparecem vozes e movimentos que convocam outra sensibilidade, ativam outra percepção e abrem outra pele. Sem nenhum espírito exaustivo ou totalizante, vou me concentrar em três exemplos (há mais). O 8 de março e as mobilizações em torno das mortes de Gabriel Cruz e Mame Mbaye.

    O mandato de masculinidade

    Segundo Rita Segato, a primeira expressão da pedagogia da crueldade é a violência machista. O capitalismo do roubo instaura um campo de batalha no corpo das mulheres.

    Na condição de precariedade geral, a posição do homem está fragilizada: ele não pode prover, ele não pode ter, ele não pode ser. Mas ao mesmo tempo ele tem que provar que ele é um homem. Os machos estamos submetidos a um \”mandato de masculinidade\” que nos obriga a demonstrar força e poder: físico, intelectual, econômico, moral, bélico etc. O mandato da masculinidade hoje se traduz assim em um mandato de violência.

    O estupro não é erótico ou prazeroso, mas uma demonstração de poder. O poder do impotente, ansioso para provar que ele é, que segue sendo um homem. É uma mensagem que um homem envia a outros homens: eu posso, sou capaz, sou dono das vidas. Não é um fato excepcional, algo feito por machos monstruosos ou \”psicopatas\”. Se assenta em uma base composta de mil violências cotidianas e transversais: no espaço público e no íntimo, na rua e na casa, no trabalho e nos relacionamentos.

    A mulher não é simplesmente um corpo-vítima da violência. O que se agride nas mulheres é precisamente sua força insubmissa ao mandato de masculinidade, a capacidade de criação de vínculos, de laços, de redes, de cumplicidades, de empatia e comunidade.

    O 8M visibilizou milhares de mulheres em toda a Espanha dizendo basta, em uma jornada inaudita de greve e manifestações massivas. Seus cantos e cartazes podem ser lidos como um registro detalhado das milhares de violências diárias que habitam a \”normalidade\”. As mulheres não voltam iguais depois de terem vivido uma jornada tão excepcional, mas voltam mais unidas e mais fortes. O 8M é apenas a crista de uma onda grande que impulsiona a transformação completa da vida cotidiana, um \”viveiro\” da violência mais espetacular que vemos no noticiário.

    E também pode ser assumido como uma ocasião para os homens que querem desobedecer o mandato da masculinidade e sair desse circuito funesto entre a indigência existencial extrema e a obrigação de demonstrar poder. Como um convite à metamorfose.

     

    As ações bonitas

    O desaparecimento e a busca de Gabriel Cruz, o \”peixinho\”, tem sido um fenômeno altamente midiatizado. .

    A mídia e as redes sociais são hoje, especialmente de um tempo pra cá, os veículos privilegiados da pedagogia da crueldade. As tendências a espetacularização (o mórbido), a simplificação da realidade (o juízo e não o pensamento) e a polarização social (a lógica de bandos, bons e maus), os atravessam transversalmente. Mas não importa se a realidade é instrumentalizada à favor da direita ou da esquerda: se contribui, em qualquer caso, para a destruição da sensibilidade, do pensamento e da autonomia.

    Apesar de tudo, a mídia e as redes facilitaram por vários dias a ativação de muitas pessoas que ajudaram na busca de Gabriel ou queriam fazer com que sua família sentisse calor e solidariedade. O apoio se transformou em ódio quando se encontrou o corpo do menino e se conheceu a identidade do assassino: mulher, estrangeira, negra. Neste contexto, a voz de Patricia Ramirez, mãe de Gabriel, ressoou como vinda de outro mundo, quando na verdade vinha do amor mais comum que existe: o amor de mãe.

    Sua mensagem principal: não se concentrar na raiva e no inimigo, mas na solidariedade e \” nas ações bonitas\”. Deslocar a atenção para os gestos de apoio que \”traziam o melhor das pessoas\” durante esses dias. Que o que permaneça, no absoluto absurdo da morte de Gabriel, é a memória calorosa do abraço social. \”Porque outras pessoas vão precisar disso no futuro.\”

    De onde Patrícia conseguiu forças para não ser envenenada pelo desejo de vingança? É a questão que os jornalistas perguntavam repetidas vezes, perplexos e impressionados. E ela sempre respondeu da mesma forma: \”Em homenagem ao peixinho, ele não era assim e eu também não\”. Ou seja, não é que Patrícia tenha conservado o \”bom senso\” e a \”cabeça fria\”, como se os afetos levassem diretamente ao ódio e à raiva e apenas a \”razão\” pudesse contê-los. Essa é a visão masculina típica. Na verdade, é exatamente o contrário: a voz de Patricia veio do amor por seu filho, de gratidão para com aqueles que se moviam por ele e do desejo de que sua memória não estivesse associada à raiva vingativa. Dos afetos.

    Precisa e preciosa palavra, cheia de humanidade e ternura, rica em metáforas muito físicas (relacionadas frequentemente à água: o rio aberto, a onda de solidariedade, a ressaca da dor…), a voz de Patricia conseguiu desarmar a voracidade da mídia e redes sociais, baseada na lógica da espetacularização, simplificação e polarização social.

    E nos trouxe, indiretamente e como um presente, algumas indicações de que todos podemos converter em modos de resistência a destruição da empatia e o cultivo de outra sensibilidade: implicar-nos em vínculos de cuidado, buscar a intimidade e o silêncio, agradecer o carinho, transformar os afetos reativos em afetos ativos, evitar a instrumentalização, não deixar que outros falem em nosso nome, não buscar excessivo protagonismo, \”olhar sempre dentro do coração\”.

     

    Guerra entre os pobres

    Mame Mbaye, de origem senegalesa, vizinho de Madrid e trabalhador ambulante, morreu no dia 15 de março no contexto de uma perseguição policial no bairro de Lavapiés. Sem dúvida, quem o matou foi um sistema de maltrato cotidiano que injeta todos os dias o medo, cerceia a felicidade e adoece, destruindo o direito humano à despreocupação, ao descanso e à serenidade, como explica Sarah Babiker.

    Esse sistema de maltrato cotidiano – a lei dos estrangeiros, a desigualdade econômica, as batidas policiais etc. – é precisamente a \”pedagogia da crueldade\”. Mais do que perseguir objetivos específicos, como a erradicação do comércio ambulante, o que se busca é produzir insensibilidade: marcar e nos fazer ver o outro como outro, distinguir entre os afogados e os que estão salvos, entre os que estão dentro e os que estão fora, nos fazem cortar a empatia e toda a solidariedade possível.

    Provocar uma guerra entre pobres, quando na verdade o coletivo de trabalhadores ambulantes é apenas o ponto mais extremo das tendências gerais de que hoje ninguém está a salvo: insegurança, vulnerabilidade e desamparo da vida.

    Um dia depois da morte de Mame Mbeye, os discursos que foram improvisados ​​na concentração da praça Nelson Mandela de Lavapiés misturava a raiva digna (de uma morte intolerável) e as palavras que apelavam novamente à igualdade, à humanidade comum, à empatia. Contra o mandato da crueldade: não sentir, não sentir com os outros, não co-moverse.

    Os oradores não falavam menos do que três idiomas (inglês, francês, espanhol), mostrando assim a potência que existe na vida migrante: a energia, as capacidades e os saberes que habitam aqueles corpos acostumados aos trajetos mais difíceis, à aprendizagem e à realfabetização constantes, à criação de redes de apoio e cumplicidade.

    Eles não são apenas pobres ou vítimas que merecem nossa compaixão, mas neles habita uma grande riqueza, um grande potencial que nossa sociedade não conhece nem deseja acolher. Como lembrou Malick Gueye, porta-voz do sindicato dos trabalhadores ambulantes, Mame não era apenas um \”camelô\”, mas uma pessoa envolvida na luta pelos direitos sociais e um artista, à quem não foi autorizado praticar sua profissão na Espanha.

    Lágrimas felizes

    Confesso:

    Me caíram lágrimas no 8M vendo logo no início da manhã um \”piquete\” de meninas menores de 16 anos (e meninos, na retaguarda) andando no meu bairro com jatos de energia e lucidez infinita em seus slogans.

    Me caíram lágrimas ouvindo Patricia Ramírez pedindo às pessoas para que \”tirassem a bruxa da cabeça\” e lembrassem das \”ações bonitas\” que ocorreram durante a busca por Gabriel.

    Me caíram lágrimas escutando os oradores da praça Nelson Mandela de Lavapiés apelarem, logo um dia depois da morte (morte política) de Mame, à humanidade compartilhada, à igualdade de todas as pessoas.

    O filósofo e escritor George Bataille dizia que há \”lágrimas felizes\”. Não são exatamente lágrimas de alegria, mas de emoção por ver algo \”milagroso\” acontecer: imprevisível, inesperado, impensável, impossível mas verdadeiro.

    É \”milagroso\” ouvir aqueles que sofreram um imenso dano falar em lutar por mais vida e não por mais morte, por mais humanidade e não por menos, por mais empatia e não por mais guerra de todos contra todos.

    Que molhemos mais os olhos dessas lágrimas para despertar e reativar nossa pele endurecida pelo princípio da crueldade.

     

    Obrigada Marga, Marta, Diego, Ema, Guille, Jabuti, Miriam, Juan, Leo pelas conversas.

    Foto: Luis Gene (AFP)

  • Geisel e a insistência do Brasil extra-legal

    Mas o leitor, a esta altura, pode estar se perguntando o que isto tem a ver com as atuais violações de direitos cometidas pelo Estado. Segundo dados do Instituto de Segurança Pública, citados e analisados na dissertação de Marielle Franco (“UPP – a redução da favela a três letras”), constata-se que “entre o ano de instauração e o seguinte, há um crescimento na ordem de 72,7%” nas áreas sob a ação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP).

     

    por: Edson Teles

    “O Presidente e o general Figueiredo concordaram que quando o Centro de Informações do Exército (CIE) prender alguém que possa ser enquadrado nesta categoria [subversivo perigoso], o chefe do CIE consultará o general Figueiredo, quem deverá aprovar antecipadamente a execução da pessoa”.

    Esta cena estarrecedora do crime de Estado consta de um memorando da Agência Central de Inteligência norte-americana (CIA), de abril de 1974. Trata-se da descrição de uma reunião do alto comando militar do país, com a presença do general presidente Ernesto Geisel, do chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI) e futuro presidente, general João Batista Figueiredo, e dos generais comandantes do CIE, Milton Tavares de Souza e Confucio Danton de Paula Avelino.

    O memorando, cujo título é “Decisão do presidente brasileiro Ernesto Geisel de continuar a execução sumária de subversivos perigosos sob certas condições”, tem gerado interpretações e debates neste momento em que se torna público. Possui seis parágrafos, sendo que dois deles, o primeiro e o quinto, são mantidos ainda hoje como sigilosos (“não desclassificados”).

    Não fosse o Brasil um país sob inúmeras ilegalidades, com forte atividade de violação de direitos por parte do Estado e sob intervenção militar no Rio de Janeiro e presença dos generais no cotidiano da política, tal memorando poderia passar quase desapercebido da opinião pública mais geral.

    Gostaria de colaborar com a releitura do momento histórico descrito no memorando a partir de três apontamentos principais, os quais, me parece, conectam a política de extermínio da ditadura com as práticas do Estado genocida do presente: o desaparecimento forçado; os “métodos extra-legais”, como teria dito o general Milton Tavares no memorando; e, a não abertura dos arquivos militares.

    Ao tornar evidente a cadeia central de comando na política de execução, algo já sabido e certificado pelo Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), algo escapou de uma análise mais imediata: a decisão de desaparecer com os corpos executados. Vejamos os números, de acordo com o mesmo relatório da CNV. No ano anterior à dita reunião, 1973, sob o governo do general Médici, 79 pessoas foram executadas segundo os “métodos extra-legais”. Destes, 31 foram considerados mortos, com a apresentação do corpo, e 48 desaparecidos, sem que seus corpos tenham sido devolvidos, nem na época, nem em democracia (das dezenas de opositores desaparecidos na ditadura, até hoje menos de 10 corpos foram localizados e enterrados dignamente).

    Os cerca de 60% de casos de desaparecimento denotam, em 1973, uma política de Estado visando apagar os rastros de seus crimes. Em grande medida, sob o impacto da eliminação de vidas e corpos na região do Araguaia, onde se organizava uma resistência armada, e, ao golpe no Chile, cujo Estado passou a colaborar com as forças repressivas brasileiras e intensificou o desaparecimento forçado no continente.

    No ano de 1974, com o general presidente Geisel, da “abertura lenta, gradual e segura” e que teria ficado famoso por conter a violência e preparar o país para a volta à “democracia”, houve 55 execuções. Foram 2 mortos e 53 desaparecidos. O desaparecimento salta para o índice de 96% do número de executados. Segundo o próprio Geisel, conforme consta do livro “A ditadura derrotada” (Gaspari, p. 387), era preciso “agir com muita inteligência, para não ficar vestígio nessa coisa”.

    Mas o leitor, a esta altura, pode estar se perguntando o que isto tem a ver com as atuais violações de direitos cometidas pelo Estado. Segundo dados do Instituto de Segurança Pública, citados e analisados na dissertação de Marielle Franco (“UPP – a redução da favela a três letras”), constata-se que “entre o ano de instauração e o seguinte, há um crescimento na ordem de 72,7%” nas áreas sob a ação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP).

    Caso emblemático é o desaparecimento do Amarildo, em julho de 2013. Sequestrado, torturado e assassinado, teve seu corpo desaparecido e nunca mais localizado após ser preso pela Polícia Militar. Há imagens que mostram Amarildo sendo levado para o posto da UPP da Rocinha, onde morava. Exposição cruel do país é que os primeiros protestos de denúncia do seu desaparecimento ocorreram com o fechamento do túnel Zuzu Angel, nome dado ao local em homenagem a mãe de Stuart Angel, desaparecido político em 1971. Zuzu, desde a prisão e desaparecimento do filho, sempre denunciou a ditadura pelo crime. Em 1976, ela morreu em acidente provavelmente montado por agentes da repressão. Para a CNV, sua morte foi montada e efetivada pela ditadura.

    Não se trata de dizer que a política decidida em 1974 ainda esteja em vigência. É bem mais grave a constatação. Trata-se de observar que a “abertura lenta, gradual e segura” do general Geisel e sua tropa produziu uma transição controlada cuja marca maior, em termos das estruturas e estratégias de um Estado repressivo, foi a continuidade em vez da ruptura. O processo político de redemocratização não desmilitarizou a segurança pública, não reviu as práticas das instituições do judiciário e não modificou a Constituição, em 1988, no que tange às polícias e ao controle social pelo Estado.

    Não houve no país uma política de memória e verdade, mal se fez reparações pecuniárias e alguns poucos lugares de memória. Entre 40 e 50 anos após estes crimes se montou uma tímida comissão da verdade. E, principalmente, se evitou ao máximo, nas instituições do Estado, relacionar a violência do passado com as práticas genocidas e de extermínio do presente.

    Hoje tempos um general gestando a segurança pública no Estado do Rio de Janeiro. Os crimes cometidos por militares contra civis voltaram para a justiça militar, como nos tempos da ditadura. Tanques e soldados desfilam pelas ruas de grandes cidades. Intervenção sem planejamento público e conhecido.

    No começo da intervenção militar no RJ, o comandante do Exército exigiu para os militares a “garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”. É como se as Forças Armadas cobrassem uma “anistia em branco” e prévia à prática de crimes. Seria, caso efetivado, a liberação do uso de “métodos extra-legais” para agir nos morros cariocas, como faziam na ditadura.

    A emergência de documentos comprovando operações de extermínio por parte do Estado brasileiro nos anos 70 tornam eventos da democracia ocorrências ainda mais graves do que já foram. Segundo relatório de pesquisa realizada pela Universidade Federal de São Paulo em parceria, entre outros, com o Movimento Mães de Maio, fica explícito a chacina de mais de 500 pessoas em uma semana, no mês de maio de 2006. O estudo demonstra que os tiros fatais, na sua grande maioria, foram dados de cima para baixo e na região da cabeça. Ação de extermínio via “processos extra-legais”.

    Apesar de haver no país uma razoável lei de informação, não tivemos acesso aos arquivos militares da ditadura. Nem mesmo a Comissão Nacional da Verdade obteve tais documentos. Sim, as Forças Armadas alegam que foram destruídos. Mas isto nunca foi comprovado. São apenas breves declarações em ofícios burocratizados. Não houve até hoje qualquer prova de que realmente tenham sido destruídos. Ao contrário, em alguns poucos momentos do pós ditadura surgiram documentos militares acerca do processo repressivo.

    Bem como, sobre os crimes de maio de 2006, não houve apuração e os documentos oficiais que comprovam o extermínio não foram considerados. A maior parte dos laudos médicos legais comprovam a chacina. O Estado brasileiro, à época, não quis federalizar as investigações, medida necessária devido ao envolvimento de forças policiais do Estado de SP.

    Conhecer hoje o que fizeram Geisel e companhia, diante do quadro de violência e terrorismo de Estado em que vivemos, demanda medidas criativas e inusitadas, sem as quais não há como efetivar processos de democratização. É preciso uma outra comissão da verdade para apurar os crimes do Estado em democracia e relacionando-os às estruturas já expostas pelo relatório da CNV.

    Paralelamente, seria fundamental reinterpretar a Lei de Anistia de 1979, tornando puníveis as graves violações de direitos, em especial os desaparecimentos forçados, o que exporia um modus operandi ainda em prática nas polícias atuais e ainda poderia atingir a cultura de impunidade em vigor.

    Por fim, a possibilidade de termos uma política de segurança pública transparente, não genocida, passa pela abertura dos arquivos militares da ditadura, bem como os referentes às ações das polícias, em especial as militares, que produziram eventos como a “Chacina do Carandiru” ou os “Crimes de Maio”.

  • quando quebra queima, coletivA ocupação: explosão, levante político-artístico e revolução do cotidiano

    por: Jean Tible

     

    \”quando o parlamento vira um teatro burguês,
    todos os teatros burgueses devem se transformar em assembleias\”, 1968

     

     

    Ocupação do Teatro do Odéon (16 de maio de 1968)

     A ocupação do Teatro do Odéon pelo comitê de ação revolucionária do teatro, pelos trabalhadores e estudantes solidários que decidem que o Odéon, Teatro da França, deixa de ser um teatro por um prazo ilimitado.

    Ele se transforma a partir do dia 16 de maio:

    – num local de encontro entre operários, estudantes e artistas

    – uma permanência revolucionária criadora

    – um lugar/assembleia de encontro político ininterrupto.

     

     

    o que vem depois da explosão?

    Em 2018, comemoramos:

    os 100 anos da revolução alemã,

    os 50 anos da revolução global de 1968 e

    os 5 anos da disrupção de Junho de 2013.

    Como continuando vivendo essas explosões? O pensamento conservador tenta conjurar esses acontecimentos (dizendo que já passou, não foi bem aquilo, não deu em nada, foram derrotados…), pois os temem.

    No fim de 2015, houve a magnífica onda de ocupação das escolas. Um movimento alegre, que surpreende e encanta a todos, na talvez primeira derrota do tucanistão (o mesmo grupo político predomina nas instituições estaduais “desde sempre”).

    A irrupção secunda se desdobra, nos anos seguintes, na luta contra a máfia da merenda e depois do corte do passe livre. E continua numa multiplicidade de espaços de luta e vida: em diversas organizações políticas, na atuação cotidiana nas escolas, universidades e locais de trabalho e outras ocupações. A ColetivA Ocupação é um dos frutos dessa faísca.

    O bom encontro de alguns artesãos da cultura com secundas nas ocupações de escolas e nos atos se reforçou com o Rózà nas escolas[1] na qual a peça Rózà, espetáculo criado a partir das cartas de prisão da revolucionária Rosa Luxemburgo dirigido por Martha Kiss Perrone e Joana Levi, percorre em 2016 algumas escolas públicas ocupadas no ano anterior em apresentações seguidas de debates. Na cena final da peça, as três rózàs-atrizes pulam o muro e tomam as ruas onde são projetadas as últimas palavras de Rosa: eu fui, eu sou, eu serei. Logo na primeira escola, um imprevisto que vai se repetir a cada vez: secundas acompanham as atrizes e pulam o muro na sequência. Peça-ato. Forma-se aí a ColetivA Ocupação. A partir de 2017, passam a ensaiar todos os domingos na Casa do Povo.

    \"\"

     

    Vários filmes sobre a luta secundarista foram realizados[2] e outros virão. São contribuições importantes. Uma característica, no entanto, fundamental e inovadora de Quando Quebra Queima: a narrativa é feita, encarnada e encenada pelos próprios protagonistas, que ocuparam escolas, ETECs e fábricas de cultura. Vozes próprias e polifonia.

    No início da peça, público e atores estão mesclados. Não é tão simples saber quem é “público” e quem é “ator”, até por que o público também é em parte secunda e uma outra parte constitui uma rede de apoio e aliados dessas lutas (professores, pais, artistas, militantes, comunidade afetiva…). Ícaro diz em certo momento tem muita gente lá fora[3]. Essa distinção existe, mas é tênue e tende a se apagar em vários momentos (músicas cantadas, jogral, corpos mobilizados…). Atores esbarram (ou quase) no público em muitos momentos nesse espaço comum.

    \"\"

     

    por-se em movimento

    Narram suas histórias e (re)pensam juntos: como superar o medo e lançar-se? Como se dá o estalo, a decisão de movimentar-se, de enfrentar as estruturas que nos moem? Como articular os corpos? São perguntas que percorrem a peça-movimento.

    De repente, tudo muda. A pulsão de vida toma o comando. Pula muro, pula catraca, prepara alicate, cadeado, faixas, todo o básico. Gasolina neles!

    O que é uma cadeira, pergunta Letícia. Tudo se transforma e assume novas funções. A cadeira não mais um lugar para sentar na sala-cela da escola-prisão. Vira trancaço. Vira barricada (que no espetáculo se forma, se move e desloca o público). Vira proteção/escudo contra a violência policial.

    \"\"

    vida comum

    A ocupação centra-se na organização coletiva: fazer a vida fluir, decidir como garantir a limpeza, comida, segurança, debates e tomada de decisões. No cuidado coletivo, dos cabelos (escova, pente…) e carinhos que aparecem em cena e nos vídeos gravados nas ocupações. Na assembleia pontual e permanente. Nas tensões e brigas retratadas com humor e jogo: todos querem falar, tomar a palavra, às vezes cortada. Discussões. Agruras e belezas da vida coletiva. As angústias e festividades da madrugada.

    O sabote o estado na prática, que pressupõe um engajamento: participar mesmo (ou seja numa construção democrática, autônoma) é difícil e exigente. Os debates e ideias da assembleia (e palavras do público) tornam-se a faixa do ato e depois estandarte pendurado na janela modernista que dá pra rua. Um retrato dos laços entre palavra e ação numa geração que retoma a ênfase no aqui e agora – não há uma Revolução, mas revoluções possíveis, novas formas de existência por descobrir e inventar. habitar novas/nossas vias/vielas/caminhos.

    corpo coletiva

    A repressão e brutas ameaças estão onipresentes. No cerco de duzentos PMs, na violência policial nos atos, na perseguição cotidiana. A peça, porém, escolhe puxar o fio da alegria espinosiana: os braços cruzados na nuca dos secundas-atores detidos viram punho esquerdo levantado: a irresistível resistência.

    A raiva (convocada pela forte música de uma rapper francesa) move, ajuda a mobilizar, mas é extremamente limitada para constituir novas relações. O sabotar das velhas estruturas se expressa na força coletiva do coro e suas coreografias. Coreografia do levante, da rebelião. Do catracaço. O muro pulado. Na dança permanente, cada uma ao seu modo. Na incorporação graças aos tambores e que leva todos para a rua e as últimas cenas.

    O fluxo do movimento é interrompido por momentos intimistas. Mostram fotos (boa parte delas feitas por Alicia) de 3 anos atrás. Suas fotos e de outros secundas. Falam de si e dos outros. Carinho e cuidado. Mulher bonita é mulher que luta, dizia um cartaz nos atos de 2015. Novos corpos nasceram, mais bonitos, mais pretos, mais livres. Novos cabelos, curtos, longos, trançados, coloridos. Um corpo coletiva de múltiplas singularidades. A rebelião cria.

    \"\"

     

    Nos últimos dias, Matheusa ativista negra não binária e estudante de artes da UERJ foi executada no Rio. 20 anos. Mais um, mais uma. Tragédia brasileira ininterrupta e naturalizada. Quando Quebra Queima retrata e encarna um ímpeto criador. Desejos revolucionários. O catártico e apoteótico fim na rua, trancando-a e celebrando a explosão e o cotidiano, teatro e política nos novos corpos – individuais e coletiva. Alicia diz: antes da ocupação, acho que eu tinha não existência. É isso que eles temem: a vida.

     

     

    4, 5, 6 de Maio (sexta a domingo), 19h
    13 de Maio (domingo), 19h

    Casa do Povo
    Rua Três Rios, 252 – Bom Retiro
    Metrô Tiradentes/ Metrô Luz

    20 reais/10 estudante e morador do Bom Retiro
    Secundarista de Escola Pública não paga
    Bilheteria aberta 1h antes do espetáculo
    coletivaocupacia@gmail.com

    QUANDO QUEBRA QUEIMA é uma peça construída por estudantes que viveram o processo de ocupações e manifestações do movimento secundarista em 2015 e 2016. Frutos da primavera secundarista, 14 corpos insurgentes deslocam para a cena a experiência dentro das escolas ocupadas, criando uma narrativa coletiva e comum a partir da perspectiva de quem viveu intensamente o cotidiano dentro do movimento.

    Ocupando o tempo presente, a ColetivA provoca de maneira pulsante o universo que compõe esse movimento que transformou o corpo e vida de todos que participaram.

    CRIAÇÃO

    Abraão Santos / Alicia Esteves / Alvim Silva / Ariane Fachinetto / Beatriz Camelo / Gabriela Fernandes / Ícaro Pio / Leticia Karen / Lilith Cristina /Marcela Jesus / Matheus Maciel / Mel Oliveira / André Dias de Oliveira / Heitor de Andrade / Martha Kiss Perrone / Mayara Baptista

     

    \"\"

    [1]   https://www.youtube.com/watch?v=Ww2ddV0q88M

    [2]   Conheço três (deve ter muito mais): Acabou a paz – isto aqui vai virar um Chile (2016), de Carlos Pronzato; Lute como uma menina! (2016), de Flávio Colombini e Beatriz Alonso; Escola de Luta (2017), de Eduardo Consonni e Rodrigo Marques e Tiago Tambelli.

    [3]   As falas da peça estão em itálico ao longo do texto.

  • Intervenção e Revolta – Revista PDF

    No dia 19 de abril de 2018, na livraria Tapera Taperá, lançamos a publicação impressa \”Intervenção e Revolta\”, produzida pelo Urucum. Ela agora está disponível no link abaixo.

    DOWNLOAD PDF => urucum_intervenção_e_revolta

  • O último cerco à utopia

     

    Mas eu prefiro abrir a janela pra que entrem todos os insetos

    por Bárbara Lopes

     

    Meu pai gostava muito de ficção científica. Ao longo da adolescência, eu pegava alguns de seus livros. Outros ele mesmo colocava na minha mão. Já nos meus vinte-e-poucos, os livros de ficção científica começaram a chegar por outros caminhos. Em 2003, quando a Aleph lançou uma tradução do Neuromancer, eu emprestei para o meu pai, que escreveu uma resenha para um site que eu co-editava então.

    Os mundos real e virtual convivem, sem que seus “habitantes” humanos sequer percebem com clareza em qual deles estão, num determinado momento. De qualquer forma, qualquer dos mundos de Neuromancer é sórdido, cruel e violento. Nenhuma fumaça de ética, exceto nos Panteras [Modernos] e nos Rastafaris. Toda a ciência e a tecnologia avançadas servem somente à desgraçada miséria da condição humana. Como diria Drummond, quando todo esse progresso chegar, felizmente estarei morto.

    Achei curioso porque meu pai gostava do sombrio na poesia e porque eram raras as vezes em que a gente discordava sobre literatura. Eu tinha adorado o livro! A distopia me parecia uma escolha mais acertada e mais interessante que a ficção triunfante de Julio Verne e Asimov (de que ele gostava).

    Desde então, vez ou outra encontrei esse tipo de crítica à ficção científica distópica e seu pessimismo paralisante. Se o progresso distópico preocupava o meu pai, o utópico me entediava. Achava mais relevante denunciar que não há um caminho natural para um futuro de avanços científicos e sociais e que esse sonho pode, de muitas e variadas formas, se converter em pesadelo. Diferentemente dele, poeta e comunista, eu havia incorporado o desgosto com as utopias.

    Essas reflexões voltaram por conta de duas obras. Na virada do ano, finalmente segui as diversas recomendações de ler Os Despossuídos, da Ursula le Guin. Logo depois, assisti a Pantera Negra. O livro e o filme têm bastante em comum: não são distopias, mas também não são utopias (pelo menos da forma como eu sempre pensei em utopias). Em ambos, há mundos melhores do que aquele em que vivemos, mas que, não sendo universais, não nos deixam esquecer o que são: possibilidades. Dessa forma, esses mundos têm de lidar com os dilemas de se manterem puros ou de correrem o risco da abertura. Há também uma diferença importante. Anarres, o planeta anarquista d\’Os Despossuídos, sofre com a escassez de recursos. Em Wakanda, não apenas há abundância, como há um metal alienígena que só é encontrado lá, o vibranium.  

    No livro, um físico deixa Anarres rumo a Urras – onde está a potência capitalista A-lo, além de outros países – para concluir e divulgar uma importante teoria científica. Anarres e Urras são um sistema planetário: um é a lua do outro. O romance alterna passagens em cada um dos mundos, antes e depois da viagem do protagonista. Ele é o primeiro anarresti a deixar sua terra, que desde a fundação vivia praticamente isolada. Sua decisão é motivada por um desejo político e coletivo de romper o isolamento e também pelos conflitos que emergem mesmo em uma sociedade sem Estado e sem proprietários.

    \"\"

     

    Wakanda é também uma terra isolada. Os demais países não sabem de sua riqueza e de seus avanços científicos. A trama do filme é a da sucessão do trono de Wakanda (cujo titular também recebe o título de Pantera Negra), em que o herdeiro T\’Challa é desafiado por seu primo, conhecido como Killmonger, que cresceu na Califórnia e cujo pai foi morto após ser descoberto traficando vibranium. Junto ao desejo de vingança, o primo se revolta com o fato de o país ser tão próspero para seus moradores, enquanto negros ao redor do mundo sofrem com a miséria e o racismo. Há também a personagem de Lupita Nyong\’o, que, sem o ódio, mas também sem a radicalidade de Killmonger, espera que seu país influencie para melhorar a situação de afrodescendentes ao redor do mundo.

    Ambas histórias são honestas, ao admitir que seus mundos podem ser bons, mas não perfeitos, como também ao deixar claro que se fechar é de fato o caminho mais seguro. N\’Os Despossuídos, isso é inclusive questionado por alguns personagens. Os anarrestis são revolucionários e não devem se conformar com a segurança. Sair de suas fronteiras é um jogo em aberto: nada garante que aquela possibilidade não será aniquilada. É fundamental que a resposta possa até parecer óbvia, mas que não seja fácil.

    Esse impasse é um terreno muito mais fértil que as certezas utópicas ou distópicas. Foi também o impasse que emergiu em um laboratório da Vila Itororó, aquela que parecia ruína, mas era construção. Um espaço que carrega as marcas de uma intensa vida comunitária. Vida e comunidade são esses fenômenos que acontecem em meio à pujança, como em Wakanda, ou em meio à escassez, como em Anarres. Na Bela Vista, essa vida foi arrancada quando os moradores foram retirados em nome da proteção a um patrimônio cultural, e conseguiu brotar de novo com a abertura do galpão para atividades públicas. Mais uma vez está sendo sacada, com a decisão da prefeitura de não dar continuidade ao Canteiro Aberto. Mas nesse intervalo, quando foi possível o exercício de lembrar-viver-imaginar, se vislumbraram: cozinha pública, moradia, redes de troca, lavanderia, memória.

    Dito assim, parece utopia (ainda mais contra o fundo distópico de mais um fechamento da Vila) nos dois polos dessa palavra: no desejo por algo melhor, justo, bonito; e também num horizonte final e impossível. É ao sair da utopia que as coisas se tornam mais interessantes. Ao descer e se debruçar sobre esse mundo não como um fim, mas como um começo, outras questões surgem: é possível – e como – preservar para os moradores aspectos importantes da vida cotidiana (como privacidade, segurança, tranquilidade) e também manter a possibilidade de circulação aberta para qualquer pessoa? É possível – e como – ter um espaço fundado nos vínculos entre as pessoas e também totalmente poroso ao mundo externo? Quais são os limites de uma comunidade? Quem fica de fora?

    As possíveis respostas precisam passar por experiências de mulheres (não é à toa que ambas obras tenham um tanto de feminismo e que os mundos que retratam apontem para outras possibilidades de relações de gênero). Não apenas porque tenha cabido, historicamente, às mulheres manter comunidades e os vínculos que as sustentam, já que \”o mundo lá fora\” surge como esfera masculina. Mas porque também coube a elas – a nós – fazer escolhas sobre o que mostrar e o que esconder. Os saberes femininos – sobre corpo, natureza, ciclos, cuidados – foram um dos alvos prioritários da caça às bruxas, como nos lembra Silvia Federici. São até hoje alvo tanto da ameaça de aniquilamento como da apropriação mercadológica. Assim, mulheres de comunidades urbanas, camponesas e indígenas estão em constante negociação sobre quanto compartilhar e quanto guardar.

    Ao invés das certezas utópicas ou distópicas, precisamos cada vez mais nos mover nesse universo de possibilidades e perigos. Felizmente, não é progresso, já chegou e estamos vivos.

  • 11 de março – 13º Encontro da Rede Permaperifa

     

    \"\"

    Foto de Rosana Oshiro

    Texto de Juliana Andrade

    11 de março de 2018

    13º Encontro da Rede Permaperifa – Escrita coletiva da carta de princípios

     

    O domingo era de Sol forte e aqui em São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo, também dia em que as ruas ganham mais espaço e perdem movimento. Esse cenário mais vazio de carros me anima e pego a bike para ir de casa até o viveiro. Gasto pouco mais de 20 minutos. Um ensaio me impede de chegar a tempo para a primeira parte do encontro no Quebrada Sustentável. Gosto de chamá-lo de viveiro, acho essa ideia de incubadora de vida muito potente, principalmente quando penso nas pessoas dali, suas histórias, as histórias de encontro com o viveiro, com a permacultura, e o gosto pela convivência. Me dou conta de que o viveiro é também um lab de envolvimento, ou melhor de envolvimentos múltiplos, e quem sabe podemos dizer também de responsabilização, no sentido de perceber o quanto estamos implicados na construção de certas possibilidades de realidade. Acho que o nome carrega algo de ‘processo vital’ que atravessa reinos, mas também esse entrecruzamento de cuidados e atenção humana: olhos atentos, mãos operantes, vontade de ver as coisas crescerem.

    O encontro, marcado já há algum tempo, foi voltado para uma importante tarefa: a escrita da carta de princípios do Permaperifa, que na verdade trata-se da revisão de uma primeira versão de carta. Daí que esse encontro da rede já começa sendo ‘excepcional’, como disse um dos presentes, pois, pelo que entendi, tais encontros são sempre compostos por prática + assembléia, nessa ordem de acontecimento (mutirões de plantio, manejo, bioconstrução, etc. seguido de um momento reflexivo e até deliberativo sobre a atividade, a rede, e por aí vai.)… “Metodologia Mão-na-massa!”. Mas esse não. Ou não da mesma forma. A importância da carta era clara e já era esperado uma imersão mais focada, de todo um dia… no mínimo.

    O processo foi aberto em suas duas partes: Na primeira, uma sequência de autoapresentações, seguida da resposta à pergunta: O que a Rede Permaperifa precisa para ser 100% minha? Ao chegar ali, conversando com D., fiquei sabendo que a ideia é tentar agregar esses contornos, essas singularidades das perspectivas sobre a rede à carta. Fico por alguns segundos pensando sobre isso enquanto analogia à relação centro-periferias, as várias vozes e jeitos e a construção de uma periferia dentro da permacultura urbana, que vai se tornando mais diversificada e diversificando o todo ‘permacultura’.

    Dou um giro rápido apenas pela área do galpão para achar os conhecidos de lá. Me pergunto das mulheres do GAU (Grupo de Agricultura Urbana) que trabalham no viveiro e vou até a cozinha, já que não as vejo nos outros cantos… movimentação intensa com o rebuliço do almoço… lá estão… Dou um abraço na Vilma e na Vizinha e saio. Pouco tempo depois vejo Maria em outro ponto do Galpão e reparo que Vinícius e Pamela também chegaram. David também atravessa por entre as pessoas carregando uma caixa de madeira. Penso nunca ter visto esse espaço tão cheio. Talvez cheio de crianças em alguma fotografia de outra época, mas apenas assim. Contei de onde estava 50 pessoas e parecia estar bem equilibrado entre homens e mulheres. Chutaria a idade média em torno de mais ou menos 30 anos… algumas poucas crianças. A maioria brancos. Reparo que em duplas ou pequenos grupos as pessoas que vão terminando de almoçar se juntam para conversar. Tento ser mais objetiva reparando uma segunda vez grupo a grupo no fato de que estão quase todos sorrindo enquanto falam. Logo um moço com bandolim, parecendo anunciar o fim do almoço, chega cantando e tocando uma música com uma letra massa… só registrei o refrão curto, que parece responder a tudo que vinha pensando ali ao me dar conta de onde estou e a razão disso tudo:
    “Vai dar certo vai
    … Só certo vai…”

    Espero que sim… Quis o resto da letra, já sabia que esqueceria. Ele e mais algumas pessoas, como eu, chegam apenas para a segunda rodada… outras que estavam num primeiro momento vão indo embora. Despedidas… abraços.

    Com o fim do almoço os presentes vão se sentando em roda, [15h]. Pego um café. Alguns vão se ajeitando em bancos, cadeiras e outros no chão mesmo, em uma parte da área coberta do viveiro, logo na entrada. Uma espécie de dinâmica corporal para que ficássemos mais dispostos e atentos para a tarefa foi conduzida antes do início da roda. Dos coletivos presentes, me recordo de estarem ali representados alguns nomes apenas: PermaGuaru, SOMOS, EPARREH, Horta di Gueto, EcoAtiva, …perdi outros nomes. Em outro momento alguém menciona que a rede tem entre 15 e 20 coletivos. E que mais ou menos 30 grupos responderam ao chamado para a formação da rede há dois anos e meio atrás. Um breve momento inicial de algo do tipo: “Como vamos fazer isso? Mas o que precisamos fazer mesmo? Ah, Ok! …” , acaba com a ideia de uma leitura inicial da carta já existente, as razões para sua reescrita e a distribuição dessas questões em pautas temáticas que faziam referência a própria estrutura da carta de modo mais ou menos direto.

    Uma das demandas que resultou nesse processo foi a de maior transparência para a dinâmica de organização e os critérios para tomadas de decisão. Algo como uma necessidade de explicitar na escrita desses critérios, como vem operando um saber tácito utilizado pelos membros mais experientes e antigos, de modo a não parecer arbitrário. Ao mesmo tempo isso coloca a necessidade de organizar esse espaço participativo que se amplia (e que é evidente nesse mesmo momento de reescrita aberta da carta), ao mesmo tempo que a própria rede parece cada vez maior, seja no número de pessoas ou de articulações que compreende em si. Nisso tudo, vem a tona questões sobre a estrutura e a identidade da rede. Sinto que é tudo mais complexo do que se imagina e decidir pela eficiência e rapidez do processo apenas, parece-me algo de certo modo “perigoso”. Mas o clima é leve e sinto algo como uma confiança e disponibilidade sincera a escuta mútua.

    Na leitura do documento, o qual não achei nenhuma cópia disponível on-line, me dou conta de como a rede é muito mais que ‘permacultura’, a dimensão da ‘cultura’ se destaca, … até rap aparece ali. E logo em seguida penso que talvez seja porque a própria permacultura demande mais para se realizar do que podemos imaginar de seus manuais. Ainda mais se pensamos a permacultura menos como fim e mais como a superação da própria separação entre meios e fins. Ou seja, que a permacultura não pretende instituir espaços permaculturais apenas mas se tornar nisso uma ferramenta de transformação de outras relações, uma infinidade delas, que aqui vão sendo incluídas e recebendo mais atenção.

    Daí que são trazidos para os debates da carta, questões da rede em si mesma: O que vamos definir como ‘periferia’? Quem é periferia? Alguém joga de maneira mais clara na roda…: “Tipo,… ‘classe média’ vota?” (risos se tornam sérios, as pessoas se olham e uma proposta de lidar com a questão é resgatada de outro espaço:) …“Se tiver somando com a periferia, como periferia, sim” …“mas tem que qualificar ‘periferia’”, … “periferia econômica e não apenas geográfica” …“é, porque tem a periferia do centro.” … “Se chamarem a gente lá em X?… É no centro. A gente vai?” “E o protagonismo?” … “O protagonismos precisa ser de quem de fato é da periferia” … “E quem é indivíduo vota?”…

    A questão mesma da participação dos indivíduos e do papel dos coletivos é exemplar. Ficou muito evidente que a história da rede é atravessada pelas dos coletivos que a compõe. Porque, em sua maioria, as pessoas estão aqui como coletivos. Algo como deixar claro que a permaperifa não é um coletivo em si, é mais um hub manufaturado de coletivos, fruto de intenções de encontro para mobilização em um outro nível, transcendendo os territórios de atuação dos grupos. Me parece ser também por isso que a periodicidade dos encontros pode ser mais espaçada. Eram encontros bimestrais, que passaram nesse 13º, a serem trimestrais. As pessoas não estão inativas nessa brecha, estão atuando localmente.

    Os encontros se tornam muitas coisas a partir dessa perspectiva: espaço para os coletivos desenvolverem a capacidade de autoorganização para o próprio acontecimento do encontro, espaço de estudo de demandas e estabelecimento de prioridades para as atividades em permacultura, de desenvolvimento de habilidades educativas, espaço de difusão e troca de saberes, tanto sobre as práticas quanto sobre as dinâmicas para articulação no território, …momento de fortalecimento da rede consigo mesma e externamente com coletivos, grupos e atores sociais locais que estão na ‘periferia’ da temática ambiental, etc. Portanto, havia ali uma insistência de que os indivíduos estão incluídos, mas é através dos coletivos que a rede ganha sentido: …“Não queremos protagonismos individuais”,… essa evidência, “autopromoção de figuras”. “Mas e as pessoas que somam como indivíduo, como elas vão participar?”… “Podem participar, mas não votar”… “Quem sabe se todos os indivíduos criam um coletivo dos indivíduos sem coletivo?” … “Daí eles não são mais ‘indivíduos’” [alguém fala em tom irônico… todos riem e me lembro da assembléia planetária do início do filme La Belle Verte]… “daí eles poderiam ter um voto”. Fica claro que essa escolha também é uma medida protetiva. Sem indivíduos votando e sendo necessário no mínimo 3 encontros para o coletivo votar nas assembléias, garante-se certa ‘integridade’ a rede e também confere mais relevância ao processo de imersão, de atuação através das relações da rede… Um tempo-espaço para se conhecerem. Mas participar dos encontros e debates todos podem.

    Assim, a rede é reconhecida como uma via de articulação inclusive para os indivíduos: “estar na rede, as vezes, é o que essas pessoas ‘soltas’ precisam para descobrir o que existe por aí”, um “meio delas se inserirem”. A rede pode ser um jeito de algumas pessoas aprenderem a se articularem inclusive com os equipamentos em seu território. Foi o que levou até ali uma das pessoas que poderiam ser chamadas de ‘novos membros’. “O que vale para nós é se a pessoa está atuando”… “Ela participa ou desenvolve ações de educação ambiental no seu bairro?” Porque boa parte do sentido da Permaperifa está em levar a possibilidade de “infraestrutura básica onde ela muitas vezes não existe”… “pra quem precisa de fato”. Lembrei de quando V. citou que após uma oficina de forno a lenha uma pessoa instalou um em sua laje… Nem sempre tinham dinheiro para comprar o gás, cada vez mais caro.

    Uma das questões que dispararam parte dos esforços em reescrever a carta estava em deixar claro os critérios de definição dos espaços dos encontros. Em cada encontro se decide o espaço onde será realizado o seguinte. Eles prevem a realização de uma prática permacultural desejada pelos espaços. Logo de saída todos concordam que a rede precisa ser mais realista quanto a sua capacidade de resposta a essas demandas que são dos coletivos. Mas os coletivos também precisam saber priorizar o que é mais urgente ser feito, algo sobre como será aproveitado esse saber e energia humana que a rede tem a oferecer. É marcada a importância de que não fique trabalho a ser feito para trás… Isso exige melhor organização… e objetivos mais realistas para cada encontro. De modo geral: “precisamos saber o que queremos fazer e até que ponto a rede tem pernas pra abraçar isso”.

    Daí parte do debate desse tópico foi pensar: O que é básico na infraestrutura básica dos encontros? Precisa-se definir as responsabilidades das partes (da rede e do coletivo anfitrião): “Até que ponto o coletivo e até que ponto a rede se responsabilizam pela organização do evento e a condução das práticas?” Lembrando também que se os espaços são periféricos e demandam uma infraestrutura que se pretende constituir ou intervir pela permacultura, então não se pode esperar que isso esteja pronto… “não ia fazer sentido nenhum”. Alguém chama a atenção diante das muitas ‘condições’ propostas que parecem aumentar…: “gente, peraí, temos de estar mais abertos e vermos com generosidade o que o espaço tem a oferecer…” Há algo sobre estar acostumado com pouco conforto… Todos concordam que o básico permaneça ‘básico para que a atividade possa acontecer’. Define-se então que os espaços precisam ao menos ter banheiro, oferecer a água e algum espaço para as refeições e descanso e que seja um ambiente relativamente seguro para as crianças. Os materiais para a prática e a alimentação também são responsabilidade do coletivo, seja para providenciar ou para comunicar ao grupo que levem comida para as refeições colaborativas.

    [Vejo do outro lado da roda passar um pote de mão em mão cheio de pedaços de manga já cortadas e por um momento me distraio da discussão. Está tudo muito colorido ali e as mangas devem estar deliciosas]

    Fala-se sobre a forma dos encontros: “prática + assembléia”, chamando atenção para algo que está recebendo pouca atenção: “vínhamos fazendo primeiro e conversando depois e isso teve reflexo nas relações pessoais. (…) Estamos muito preparados para fazer, mas pouco estruturados para lidarmos conosco mesmo (…) é hora de alinharmos os discursos com as práticas. Porque há uma questão de convivência, de aprender a lidar com questões relacionais que precisamos desenvolver”. Fico pensando nesse conjunto de frases e chego a conclusão de que talvez esse processo esteja reabrindo o próprio significado da permacultura num aprofundamento que demonstra como as transformações que se pretende com ela, para serem coerentes precisam ser afinadas com outras dimensões da vida. É sobre afinidade entre discursos e as práticas a eles relacionadas eletivamente. Alguém fala do quanto a questão da inclusão é estética, e de que o óbvio não é óbvio: “A gente tem que falar, não é óbvio. As entrelinhas tem de ser ditas” Talvez essa configuração de uma permacultura favoreça certa apropriação em relação a outras menos atentas a variedade de contextos materiais e simbólicos existentes. Apareceu antes também a necessidade de mediação de conflitos pessoais. Esses não precisariam ser abordados em assembléia, podendo ser encaminhados com a ajuda de pessoas que tem habilidades específicas nesse sentido.

    Não se inclui com pouco esforço e sem movimento, e o retorno e reabertura de pautas aparentemente já fechadas nesse encontro, demonstra o quanto as questões se atravessam na realidade concreta. No caso, o tópico comunicação teve algumas nuances. Uma delas diz respeito à linguagem da carta. Entra na roda a permanência do termo “federalista” para definir o funcionamento da rede e destacar a autonomia dos coletivos membros. “Isso é Proudhon”… “Acho melhor tirar e deixar numa forma mais direta possível”… “deixa” … “não subestima a linguagem da periferia” [Me sinto contemplada e penso que poderia ter sido mesmo ‘Não subestime a periferia’ … Tem uma diversidade que sinto ser apagada quando não é a periferia que está falando de si] “Mas precisa usar essa palavra?” … “Por que a gente não deixa e põe uma nota de rodapé explicando?” Algumas vozes concordam… “Às vezes uma palavra abre portas e fecha outras”… citam o exemplo de dizer que a permacultura é anarquista e como isso é visto, o que significa para certo público que o Permaperifa poderia se aproximar. …No geral as pessoas concordaram… “ … Mas é anarquista” alguém solta com uma risada.

    Alguém cita a possibilidade da rede ser também de “ajuda mútua” em situações que transcendem a permacultura. “Alguém da rede, por exemplo, fica grávida… mãe solteira, desempregada… E aí, quem vai ajudar nessa hora?” ou até medidas para que os encontros fossem possíveis para outros públicos que não costumam participar… Isso demanda entender por que quem não participa não participa. Quem está na periferia do permaperifa? As mulheres do GAU são lembradas em algum momento. Só participam quando os encontros são no viveiro. Pergunta-se do espaço das donas de casa nessa permacultura que se pretende periférica. E lembram-se das propostas sobre espaços e atividades para as crianças durante os encontros… e se “Rola uma vaquinha pra dar uma ajuda de custo, pra quem não tem grana conseguir atravessar a cidade e participar?” … “Eu já fiz isso…” alguém diz. Surge também a questão das “cotas” nos cursos de permacultura para membros da rede, para as quais são pensados critérios… Decide-se que as pessoas que pleitearem as vagas gratuitas nos cursos se juntem para decidir entre si quem irá.

    Estes se tornam pontos que demandam a produção de informações, um levantamento sobre os perfis dos membros da rede: “Talvez seja o caso fazer uma reflexão para saber de onde as pessoas vem, quantas pessoas vem de fato da periferia e quais periferias são essas” Mas em grande medida isso vai além de números, de renda. Falam também da possibilidade de rolar uma inscrição para os coletivos que vão se tornar membros. Alguém cita, dando o exemplo da venda local de alguns dos produtos do GAU ali no dia, que a rede pode ser também uma rede de troca e venda dos produtos produzidos pelos coletivos.

    Ao abordar a composição dos conselhos, perguntam sobre a diferença prática entre as assembléias e o conselho. É explicado que o conselho é fechado e as assembléias são abertas. Enquanto as assembleias acontecem junto dos encontros, os conselhos se dão em outros momentos, com um número reduzido de participantes, alguns que dinamizam mais a rede [perdi parte dessa discussão] e representantes dos coletivos. Mas o chamado ‘núcleo duro’, informal, que parece não ser sobreposto ao conselho e que viabiliza questões urgentes por decisões práticas, operacionais e rápidas, não funcionaria desse modo se houver muitas pessoas. As discussões sobre a existência dessas diferentes dimensões decisórias e de canais de comunicação, suas características em termos de participação e os problemas que colocam, de algum modo se cruzam com as características funcionais dos meios de comunicação ‘escolhidos’ para cada uma delas: grupos de whatsapp, de facebook, página, lista de email, o que é aberto ao público, restrito a membros, relativamente seletivo, restrito ao tal ‘núcleo duro’, ou a possíveis grupos de trabalho que venham a se constituir no futuro,… o que é oficial, extra-oficial. Alguns ‘limites’ são assumidos e idealismos confrontadas: “esse núcleo já existe, precisamos assumir sua legitimidade” … “não é um lugar de destaque pessoal, é um lugar de responsabilidade…” “é pra segurar bucha”, mas faz parte da rede. Alguém fala que “na real, é também um grupo de amigos” … que tem uma história juntos e parece haver uma intersecção entre essa história e a história da rede. Acho que esse ponto permaneceu ‘em construção’, …aberto, mas saí antes de presenciar algum encaminhamento disso.

    Fala-se sobre a questão da mídia livre: “Como pretendemos ser revolucionários usando facebook, whatsapp, gmail? … E a questão da mídia livre?” … Alguns concordam com a colocação, mas não ganha muito eco. Um ar de cansaço faz parecer que já atravessaram esse debate antes, talvez não ali: “A gente não consegue dar conta nem das redes e canais que a gente já usa” … “Acho que um grupo de permacultores não é um risco potencial” (sobre a informação que trocam ser alvo de vigilância) … alguém menciona o gmail como se fosse um ambiente mais seguro (parece ter comparado com os chats populares)… outro fala de usarem rise-up. Mas não lembro dessas vozes saírem de algo rápido e paralelo, sem importância suficiente reconhecida para ocuparem espaço na discussão da comunicação.

    A reunião parecia ainda demorar um tanto para acabar e decido ir embora antes do anoitecer. Afinal, o trajeto a ser feito não é muito seguro num domingo a noite. Em vários momentos durante a tarde penso nessa capacidade da permacultura ativar possibilidades através do envolvimento. Algo como uma confiança no que esse envolvimento prático faz emergir em cada um. Ao mesmo tempo penso na questão estética que se falou na roda. Observo a questão do pertencimento. Penso no reconhecimento, no modo das pessoas se expressarem ali, se reconhecerem nas falas uns dos outros. E isso atravessa essa observação mais atenta a respeito da escuta, de hierarquias sutis que se projetam nas dinâmicas. Nos espaços que se abrem quando as pessoas decidem comunicar o que tende a permanecer como “não-dito” embora percebido por praticamente todos, principalmente as minorias, que anunciam as assimetrias, as interpretam nos gestos e falas despretensiosas. Isso é muito forte. As pessoas tem muito a dizer. A periferia tem muito a dizer para a permacultura e qualquer processo que tenha surgido em espaços mais “centrais”, e toda a evidência que carregam. Quem decide usar essa e outras tecnologias para transformação social precisa estar atento e disposto a abrir mão de privilégios, ou melhor, distribuí-los, soltá-los, sem medo, para que algo diferente aconteça, perceber que certas noções de eficiência se conectam a formas específicas. Isso envolve reconhecer certas ‘habilidades’ como privilégio e entender o privilégio presente em sua própria história, suas ‘conquistas’.
    Chego em casa e vou ver um vídeo que seria projetado no dia, mas não rolou… “Se plantar”. O vídeo é belo, a letra engraçadinho com um refrão chiclete que funciona. Vale a pena.

    *Os presentes no dia que quiserem complementar o relato, anexar documentos e links e fazer comentários podem realizar as inclusões por esse link: https://docs.google.com/document/d/1aUNA6ijEvTluSbSySeFzltCoJGUsfQw0hZlh3sSL_Zw/edit?usp=sharing

  • o Brasil ratifica que lugar do negro é na favela, se não estiver na favela é nas prisões, e se não for nas prisões é no cemitério

     

    “Com a intervenção militar o Brasil ratifica que lugar do negro é na favela, se não estiver na favela é nas prisões, e se não for nas prisões é no cemitério”. Entrevista com Monica Cunha

     

    Por Alana Moraes e Fábio Zuker

     

    publicado originalmente em Horizontal: https://goo.gl/w8i2DP

     

    Não é exagero dizer que desde 2015 o Brasil está mais parecido com ele mesmo. Ao menos com o Brasil dos vencedores, o Brasil branco e colonial. O governo do presidente Michel Temer, fruto de um golpe de Estado maquiado de impeachment que destituiu a presidenta Dilma Rousseff, estabelece um plano de governo jamais submetido ao escrutínio popular pelas urnas. As paredes que sustentam a reação neoliberal imposta por meio das medidas de austeridade aliadas a retrocessos trabalhistas, ambientais e de políticas sociais são as mesmas que ainda mantém de pé um aparato racista de genocídio e extermínio. Austeridade e violência de Estado constituem-se como um novo regime de governo da vida que agora se atualiza com a intervenção militar no Rio de Janeiro.

     

    A proposta tirada da cartola da noite para o dia, sem plano claro, e que causou incômodo não apenas na mídia e em círculos próximos a defensores de Direitos Humanos, mas também no alto escalão do exército – que considera a medida ineficaz para combater a violência, embora não tenham hesitado em solicitar pública e oficialmente que eventuais crimes cometidos pelas forças armadas não fossem julgados. Marielle Franco, mulher negra e favelada, eleita com 46.502 votos, era relatora de comissão legislativa que fiscaliza a intervenção e desde o início foi uma das vozes mais contundentes contra a operação militar.

     

    Na quarta-feira, 14 de março, por volta das 22h, Marielle Franco, do Partido Socialismo com Liberdade (PSOL) foi assassinada com quatro tiros na cabeça, ao sair de um debate sobre direitos das mulheres negras. A munição usada foi de um lote vendido para a Polícia Federal. Mais uma vez, o Brasil maior revela sua face em uma cena trágica de execução. Mas agora, o Brasil das revoltas subterrâneas e permanentes atende o chamado de Marielle e inunda as ruas do país nos lembrando que a guerra não acabou.

     

    É esse o momento em que realizamos a entrevista com Monica Cunha, uma mulher negra, militante e mãe de um jovem executado pela polícia civil em 2006. É desse lugar de mãe que Monica denuncia um Estado que mata um jovem negro a cada 23 minutos. Monica e Marielle, duas mulheres negras que se encontram para ecoar a voz de um Brasil que ainda não se deixa matar.

    A intervenção militar no Rio de Janeiro

     

    O meu entendimento sobre a intervenção militar no rio de janeiro não é igual ao da maioria. Mas deveria ser, pois a maioria das pessoas no Rio de Janeiro são pretas, pobres e faveladas, moradores da periferia. Apenas uma minoria que entende para que serve, e para que é essa intervenção dentro do estado do Rio de Janeiro. Pra mim, é mais uma forma de militarizar o negro, o pobre e o favelado. É mais uma forma de não dar a oportunidade, de segregar esse povo dentro de seus espaços e seus lugares. É mais uma forma de tirar o direito desse povo de ir e vir.

     

    Durante a ocupação na Maré [complexo de favelas da Zona Norte do Rio de Janeiro], que ainda não era uma intervenção (…) quem está lá dentro sabe que não foi bom. Mas é óbvio que quem está aqui fora não tem a mesma visão. As pessoas de fora acham que a intervenção veio para combater os jovens que estão dentro desse varejo. Por que eu digo varejo? Eu não digo tráfico e nem bandido, pois eu tenho um outro entendimento sobre isso. Se eu for ficar ratificando que esses adolescentes e jovens são bandidos e traficantes, terei que dizer que eu pari um bandido. E isso não é verdade! A droga não é feita dentro do morro, não existe condições de se ter uma central de produção de armas dentro da favela. Então isso tudo é trazido de fora.

     

    Temos que entender por que esses adolescentes tiveram apenas essa alternativa de vida para arrumar dinheiro. Eles querem estar na linha de frente? Eles querem estar com o corpo deles caído no chão? Te digo com certeza que eles não querem! Mas eles não têm oportunidades: as escolas públicas são uma vergonha, no Brasil todo. Dá pra contar nos dedos os dias de aulas que tem na favela.

     

    Esses jovens infratores são vistos com uma arma na mão, com um saquinho de maconha na mão, então muitos acreditam que é ele que precisa ser abatido, que é ele o bandido. Mas isso foi construído por quê? O Brasil foi o último país a abolir a escravatura e ainda não fez nenhuma reparação. Com a intervenção militar, o Brasil ratifica que o lugar do negro é na favela, se não estiver na favela é nas prisões, e se não estiver nas prisões é no cemitério. A militarização vem para, mais uma vez, afirmar essa situação.

     

    Monica Cunha, 52 anos: mulher, negra e militante

     

    Tenho dezesseis anos de militância de direitos humanos anos, que começam com a situação do meu próprio filho. Sou uma mulher negra, moradora da zona norte, do Rio de Janeiro, e tive três filhos. O meu filho do meio se chamava Rafael da Silva Cunha, e se tornou um adolescente autor de ato infracional. Aos 15 anos de idade, entre 2000-2001, ele ingressou no sistema carcerário para cumprir medidas sócio educativas.

     

    Até conhecer esse lado cruel da vida, eu tinha uma situação razoável, com meu marido tínhamos uma pensão. Eu trabalhava na cozinha. Depois trabalhei em restaurantes e bares. Mas uma das primeiras coisas que me aconteceu, quando passei a viver essa experiência, foi perder o meu emprego, por conta dos dias de visita ao meu filho cumprindo medidas sócio-educativas. Perdendo o emprego, perdi o meu sustento, e aí comecei a decair.

     

    De 2001 para cá começa o meu entendimento, no começo muito cru, porque eu nunca tinha vivido isso na minha família. Aprendi tudo na marra, com muito tropeço, sendo muito maltratada, desrespeitada, tendo a minha autoridade de mãe retirada, não sendo mais vista como mãe, e sim como culpada por ter parido um filho que está dentro do sistema carcerário.

     

    Eu entendi logo no início, é que precisava estar junto dessas outras famílias [de jovens cumrpindo medidas sócio-educativas], e principalmente fazendo o recorte de gênero e de raça, porque eram as pessoas que estavam nessa luta junto comigo, desde o início. Então eu visualizei que minha luta precisava começar por aí. Comecei eu mesma passando a me identificar como mulher negra – o que na minha geração não era algo que se acontecia de imediato. Essa identificação auxilia para entender também o que eu estava passando, inclusive outras mulheres com histórias muito mais complicadas do que a minha; com situação de moradia muito mais complexas, pois eu nunca vivi numa favela. Essa separação entre asfalto e favela existe e é real.

     

    Aos poucos fui entendendo melhor as formas de atuação, me formei como Técnica em Educação Social, coordenei projetos dentro do governo do estado. Atualmente trabalho na Comissão de Direitos Humanos da ALERJ [Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro] presidida pelo deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL) e continuo no Criola [instituição de 25 anos voltada à defesa dos direitos de mulheres negras no Estado do Rio de Janeiro]. Para eu estar dentro disso tudo e ter base, fundei o Movimento Moleque, constituído por mães e familiares de adolescentes dentro do sistema prisional, em um contexto que debate o direito dessas mães e familiares em cuidar desses adolescentes, retirando a culpabilidade que lhes é imposta; a sociedade acha que nós familiares somos as culpadas pelos adolescentes cometerem atos infracional.

     

    O que ocorre é que esse ato infracional cometido por jovens cria um entendimento de que esses adolescentes podem ser assassinados, [muitas pessoas pensam]: “eu posso matar esse menino porque, afinal de contas, ele já roubou alguém, ele é ladrão!”. O Movimento Moleque debate que além do Brasil não ter pena de morte, os adolescentes não podem cumprir pena, e sim medidas sócio-educativas. Assim, é fundamental o apoio familiar aos jovens. Pois não é só a mãe a responsável. Muitas vezes eles não tem o pai. Eles apenas doam o seu espermatozóide. Mas e as avós, as tias, as primas? O Estado, diante de jovens cumprindo medidas sócio-educativas, lida só com a mãe, o que a faz a gente carregar todo esse peso nas costas.

     

    A culpa não é desse jovem e nem da sua família. Toda essa situação é caracterizada pelo racismo, que leva esses adolescentes a estarem onde estão, e acabarem com suas próprias vidas e serem enterrados por conta disso. Em um país em que a maior parte da população é a negra, não temos as mesmas oportunidades: não temos políticas públicas que funcionem, que façam com que esse adolescente tenha uma situação de direitos adquiridos, e consiga ter uma infância e uma adolescência com todas as oportunidades que qualquer outro da classe alta tem.

     

    O assassinato de Marielle Franco

     

    Esse abate foi muito grave, foi uma perda muito profunda. Essa relação com as mulheres, era o que ela gritava com muito orgulho: “eu vim da favela, eu vim da Maré, eu sou mulher, mulher preta! Eu vivi isso”. Ela trazia no corpo a experiência que a maioria de nós, mulheres negras, vivemos – mas que para termos voz é muito difícil. Construímos a várias mãos, e então conseguimos colocar Marielle lá [na posição de vereadora]. Essa mulher que gritava a perda de nossos filhos, essa mulher que gritava o encarceramento dos nosso filhos, essa mulher que gritava as más condições em que nós vivíamos! Ela entendia bem o que gritávamos também.

     

    O assassinato dela foi uma perda irreparável, foi um baque muito grande. Mas como nós estamos acostumadas a chorar e nos desesperar, ao ver como nossos filhos são abatidos, nós temos que, antes mesmo do enterro, limpar as nossas lágrimas e sair gritando por justiça. E foi exatamente o que nós fizemos a partir da execução da Marielle. Já estamos à frente gritando por justiça. Já estamos ecoando o que ela falava. Já estamos não deixando morrer a voz dela e o que ela pregava. O seu assassinato é mais uma vez matar a voz do povo negro. Mais uma vez afirmar que essa mulher é negra, que essa mulher é da favela.

     

    Quando essa Marielle chegou lá [na assembleia legislativa], ela não foi maquiada. Ela foi para de fato cumprir o que os eleitores esperavam dela. Ela carregava muita coisa, como negra, favelada e lésbica – imagina a dificuldade que é para tantas meninas dentro da favela, a homofobia, pessoas querendo matá-las. E ela levantava o debate “a gente pode sim! Podemos ser!”. Muitas demandas que vinham no corpo dela, e que a cara dela mostrava.

     

    A Marielle é um símbolo muito forte.A voz da Marielle não pode morrer! E a voz da Marielle está em nós todas! Desde quarta-feira, dez da noite, todas nós, mulheres negras, estamos nos chamando Marielle Franco, levando a bandeira dela, que é uma bandeira nossa. Vamos dar continuidade a tudo que em um ano e três meses ela começou. Nós podemos estar nesses espaços, câmara dos vereadores, ALERJ, Brasília. Esses espaços são nossos, não só como vereadoras e deputadas, mas também enquanto sociedade civil ocupando esses espaços.

     

    Esse foi o legado que essa mulher nos deixou, e que não vamos deixar calar. Quando me perguntam quem fez essa brutalidade contra Marielle, eu respondo: foi o racismo! Foi a forma com que este país trata a maior parte da sua população. Eles deixaram claro que para um negro, não faz diferença se você é vendedor de balas, uma doméstica ou uma vereadora. No final das contas, o corpo fica no chão, baleado, de qualquer jeito. Mas não vão nos amedrontar.

     

    Reportagens para saber mais:

     

    (em espanhol)

     

    Brasil llora por una mujer negra, lesbiana y feminista

    El País, março 2018 >>

     

    (em português)

     

    Nota do PSOL: Marielle Franco, presente!

    Site do Partido Socialismo com Liberdade, março 2018 >>

     

    Meu guri: a mãe, a avó e a mulher de um dos 250 mil brasileiros presos antes do julgamento. Revista Piauí, setembro 2017 >>

     

    Mal-estar na caserna: Intervenção no Rio expõe divergências entre generais e empurra o Exército para o centro do processo eleitoral.

    Revista Piauí, março 2018 >>

     

    Homenagem a Marielle de um coronel da PM do Rio: Os sinos dobram por ti

    Geledés, março 2018 >>

     

     

     

     

     

  • um mundo de soldados e estrangeiros

     

     

    por Frederico Lyra de Carvalho

     

    Não tem sido raro ir na feira comprar tomate e cebola e, seja no caminho de ida ou de volta, ser escoltado até quase a porta de casa. Ou ainda, na hora de pegar trem para uma outra cidade qualquer, ter de passar no meio de uma patrulha na estação. Ou ainda me ver obrigado a dividir o trajeto do ônibus com nove soldados todos juntos de pé. Como estou quase sempre de mochila nas costas, vai que sou confundido com um homem-bomba? Desde os atentados do 13 de novembro de 2015, patrulhas do exército francês invadiram as ruas de Paris e das outras cidades importantes da França. Se antes dos atentados elas se limitavam a vigiar os lugares mais turísticos, hoje as patrulhas de quatro a nove soldados proliferam pelos quatro cantos da cidade. A presença de soldados por todos os lados já pode ser incluída na nova normalidade do modo de vida parisiense. Se antes era essencialmente “pra gringo ver”, agora é para todo mundo sentir esta presença e não esquecer que eles estão lá. Permanentemente? Parece ser este o caso. É difícil imaginá-los saindo de um dia para o outro da rua como se nada houvesse acontecido. E dada a reestruturação profunda no Estado e modo de vida francês que está sendo levada a cabo pelo governo de Emmanuel Macron, o mais provável é piorar. Não foi com ele que esse movimento se iniciou, mas ele tende a se agravar. O mais provável é que eles tenham chegado para ficar.

    “Mas eles não fazem nada”, me disse um amigo outro dia. Ainda bem, mas até quando? “Parece que as metralhadoras não ficam carregadas de munição. Embora eles as possuam consigo, eles teriam que parar por um segundo para carregá-las, então não tem perigo imediato”. Menos mal, mas até quando? No entanto, se for este mesmo o caso, poderíamos nos perguntar o porquê de encher as ruas de soldados se eles nem vão ter tempo hábil de “metralhar os terroristas”? Visto por este ângulo, no fundo eles estão lá para não agir. Menos mal. No entanto, já que a justificativa para o qual foram incumbidos de efetuar, isto é, vigiar as ruas para evitar novos atentados, está impedida de ser efetivamente realizada dado o tempo hábil de que eles não dispõem para disparar o seu armamento, talvez fosse melhor afinal que eles não estivessem nas ruas. A naturalização da presença militar efetiva para a defesa da sociedade francesa já está em vias conclusão. Praticamente ninguém, além daqueles vistos como potenciais terroristas que cada vez que cruzam com um patrulha se lembram que é contra eles que aquele dispositivo é dirigido, estranha a sua presença. Nada como comprar pão e ter o privilégio de ter tal escolta no caminho. É quase um luxo.

    Se obviamente não é possível, sob hipótese alguma, comparar a situação dos boulevards parisienses com a das favelas cariocas e demais cidades nas quais o exército brasileiro tem sido chamado a intervir, é, no entanto, interessante observar que a ocupação militar do cotidiano civil tem se tornado, cada vez mais, uma prática recorrente para os mais diversos Estados pelo mundo afora. Isso talvez nos lembre que a situação de Estado de Sítio tem sido sentida nas suas mais diversas escalas possíveis. A generalização desse dispositivo militar é no fundo compartilhada por todo mundo. Ou quase. Há um outro aspecto que decorre e que também é interessante de ser observado no uso militar pelo governo francês. Ao menos por enquanto, ele tem se dado na direção contrária à brasileira. Os bairros populares localizados nas banlieus das grandes cidades continuam sob forte vigilância e controle apenas do aparelho policial. O exército ainda não foi chamado para intervir nestas localidades. O dispositivo militar se encontra nos grandes centros. Dito de outra forma, com a sua intensa presença nas ruas de Paris, ele meio que passa a funcionar como um dispositivo ideológico de pacificação da classe média e da elite francesa. No final das contas é quase um teatro social. O exército serve para lembrar a estas camadas que eles não precisam se preocupar demasiadamente, pois o Estado continua sim firme e forte, omnipresente.

     

    imagem: Basquiat

  • A morte branca de uma feiticeira negra

     

     

    Por Alana Moraes

    Uma névoa densa e ácida ainda habita nossos pulmões.
    Foi o Estado.
    A respiração experimenta um ritmo impreciso. É forte e súbita como a ventania que tomava conta do Rio de Janeiro no instante em que Marielle era executada.
    Foi o Estado.
    Dizem que é no pulmão onde guardamos as tristezas difíceis.
    Foi o Estado.
    Estamos inundadas por dentro, respirando o vendaval deixado pela ausência forçada de Marielle.
    Foi o Estado.
    A bala que perfurou Marielle pertencia ao Estado e ele vai ter que provar sua inocência – mas à essa altura, já não somos tão ingênuos para acreditar em suas provas.

    No mesmo momento em que tentamos reunir força e coragem para juntar nossos cacos e para recuperar a voz que não seja apenas grito, temos que ver a Globo se apresentando para contar essa história. A globo está desaparecendo com Marielle pela segunda vez. A Globo está arrancando de nós uma história, um corpo, um grito. E está fazendo isso com uma habilidade assustadora. Bem diante dos nossos olhos.

    Já sabemos bem que a história que nos contam é quase sempre a história dos vencedores.  \”Até que os leões possam contar a sua história a caça glorificará sempre o caçador\”diz um antigo provérbio africano. No dia de sua execução, Marielle lembrava no twitter o nascimento de Carolina Maria de Jesus, uma mulher negra que ousou contar sua própria história. Diário de uma favelada foi uma arma contra a autoridade narrativa dos poderes que traduzem, explicam, interpretam.

    O que vimos no Jornal Nacional de sexta-feira e no fantástico de domingo foi uma violência narrativa, um ataque simbólico e extremamente concreto à força de Marielle, à sua voz e luta política. Imagens de Marielle entram em cena nas reportagens, quase sempre, silenciadas e narradas por um narrador externo. Quando Marielle aparece falando é sempre interpretada por uma voz (branca?) que explica sua atuação: \”ela lutava por paz\”, \”ela queria justiça\”, \”os brasileiros que não toleram mais a violência, a covardia e a impunidade\”. A globo é parte dessa ficção que produz medo para vender a segurança, cúmplice da política de militarização e pilhagem dos recursos públicos. Mostram militares \”levando a cidadania\” à favela, a única saída possível. A Globo está vendendo seu renovado programa político.

     

    O que está em curso é uma operação de  domesticação da figura de Marielle, a fabricação de uma comoção que clama por \”justiça\” e \”punição\”, mas temos que saber: essa justiça não é a nossa. A nossa guerra tem nome. A guerra de Marielle era contra o Estado penal, a cultura punitivista e patriarcal, o funcionamento racista e colonial que ainda dirige a potente máquina de exterminar e encarcerar pretos pobres. Essa máquina que também é dirigida pela emissora quando legitima cotidianamente chacinas, execuções, ocupações militares. É um renovado regime de governo sustentado por poderes à margem da lei, no qual a \”paz\” assume a face de uma guerra incessante.

    Não vamos aceitar a violência interpretativa da Globo, não concedemos à essa empresa o direito de narrar nossos mortos. Não vamos aceitar o esvaziamento político da execução de Marielle.

     

    É preciso respeitar a dor, o luto, o sofrimento dos mais próximos – mas é também preciso coragem para não deixar a dor ser capturada pela máquina de extermínio, pela necropolítica da globo e daqueles que defendem a militarização do rio de janeiro, do Brasil. O filósofo camaronês Achille Mbembe costuma dizer que o capitalismo contemporâneo tem um projeto de tornar negro o mundo todo, expandindo assim a experiência de violência e exclusão que é parte constitutiva da vida negra. Essa necropolítica, segundo o filósofo, atua pela \”instauração de práticas imperiais inéditas que devem tanto às lógicas escravagistas de captura e de predação como às lógicas coloniais de ocupação e exploração\”.

     

    A execução de Marielle não foi fruto de um \”caos\” ou \”desgoverno\”, mas ao contrário, a execução é parte de um plano de governo. Um governo cujo programa é a produção incessante do medo e de inimigos matáveis. A máfia de todas as máfias ainda é aquela que compra deputados, compra a justiça e agora decidiu empenhar um crédito extraordinário de mais de um bilhão para a intervenção no Rio de Janeiro. Mas a nossa guerra não se compra.  A globo está usando a comoção em torno da morte de Marielle para convencer a todos que não temos mais saída a não ser a intervenção militar. Pacificar para governar.

     

    No candomblé, Exu é um orixá extremamente poderoso, capaz de transitar entre o sagrado e o profano, o mundo dos vivos e o mundo dos deuses. Exu é a figura mais importante da cultura iorubá: ele é capaz de falar todas as línguas e, portanto, se impõe soberano na arte de narrar. Ele é o começo de tudo e o começo foi a desobediência de Exu recusando  as fronteiras entre o mundo dos deuses e o mundo da carne, do humano.

    No final da década de 1970, Renato Ortiz escrevia um livro sobre as transformações e traduções da figura do Exu do candomblé para a umbanda. Com suas influências católicas e kardercistas, a umbanda (em algumas de suas expressões, não é possível generalizar) operou uma \”purificação\” de Exu, o tornando um \”guardião de luz para as trevas\”, um espírito em constante \”crescimento e evolução\”. Foi a morte branca de um feiticeiro negro.
    A potência de Marielle deve ser cuidada e amplificada. Exu é o fim, mas antes disso, o começo. O Estado colonial e suas formas narrativas operam domesticando a revolta, silenciando os tambores, purificando os sacrifícios. Marielle é nossa encruzilhada histórica. Seu corpo agora vibra desobedecendo fronteiras entre mundos, nos convoca a pensar sobre a força política da ancestralidade. Marielle não é santa, mas feiticeira. Feiticeira negra de um mundo que nunca se calou e que não se pode deixar traduzir.  Denunciava o enquadramento maniqueísta do estado penal e profanava seu esquema de classificação que elege os matáveis daqueles que merecem viver. Os bandidos são os mocinhos, insistia Marielle.
    Silvia Federici afirma que se Marx tivesse olhado a história do surgimento do capitalismo pela perspectiva das mulheres, ele não seria tão otimista com a noção de progresso. A execução de Marielle nos arrasta também para uma perspectiva incontornável: o pilar de todo o poder é ainda o Estado colonial, racista e patriarcal. A reação neoliberal hoje no mundo e o que conhecemos como politica de austeridade tem como modo de funcionamento o genocídio contra o povo negro, o encarceramento, sem falar na explosão do feminicídio – produzir miséria e conter a revolta. A guerra é declarada e se a esquerda não assumir essas perspectivas vamos ser engolidos pela máquina de extermínio neoliberal.
    Precisamos reconstruir nossa radicalidade a partir de uma nova língua. Nomear aqueles que nos matam, convocar saberes ancestrais que estão há séculos construindo e narrando experiências de resistência e sofrimento. \”Para curar a cisão entre mente e corpo, nós, povos marginalizados e oprimidos, tentamos resgatar a nós mesmos e às nossas experiências através da língua. Quando preciso dizer palavras que não se limitam a simplesmente espelhar a realidade dominante ou se referir a ela, falo o vernáculo negro\”.  Aprender com Bell Hooks e o feminismo negro. O grito de liberdade de Angela Davis. A força de vendaval de Marielle Franco.